-
Arquitetos: Boldarini Arquitetos Associados; Boldarini Arquitetura e Urbanismo
- Área: 1500000 m²
- Ano: 2008
-
Fotografias:Daniel Ducci, Fábio Knoll, SEHAB-PMSP
Descrição enviada pela equipe de projeto. São diversas as conformações que compõem o espaço urbano da cidade de São Paulo e são inúmeros os desafios a serem superados para dotar determinadas áreas de qualidade e infraestrutura urbana.
As formas de intervir na cidade e, especificamente, em assentamentos precários consolidados, pressupõe a adoção de alternativas de projeto que considerem as preexistências territoriais, em suas potencialidades e limitações.
Dentro desta perspectiva, a partir daquilo que já foi previamente concebido no contexto socioespacial, vê-se de forma clara a transição que vivemos hoje no campo do urbanismo, em que a racionalização das formas e funções do movimento moderno e a ruptura com a cidade existente não encontram mais espaço na atuação profissional.
Ao propor a urbanização de um assentamento precário objetiva-se integrá-lo a cidade oficial, dotá-lo da infraestrutura urbana necessária, qualificá-lo como ambiente construído que permita o desenvolvimento do indivíduo em sociedade, porém sem necessariamente reproduzir o padrão formal dos bairros implantados conforme a normativa urbanística.
Pensar e intervir nessas áreas, numa cidade como São Paulo na atualidade, é considerar, além das questões próprias de cada assentamento, as possibilidades de mobilidade daquela população com o restante da cidade.
O processo de conformação desses assentamentos ao longo dos anos foi permeado por diversas experimentações e formas de atuação pelo poder público municipal que, mais recentemente, tem adotado como estratégia tratar cada um deles em suas especificidades físicas e sociais, ao mesmo tempo em que utiliza, como unidade territorial de planejamento e intervenção, a sub-bacia de drenagem.
O projeto de urbanização, elaborado para esses loteamentos irregulares que compõe o Cantinho do Céu, foi desenvolvido a partir de estudos e diretrizes formulados pela Secretaria Municipal de Habitação, em conjunto com a Promotoria Pública, como alternativa a uma ação civil pública que determinava a desocupação da área.
Diante do desafio de intervir nessa área objeto de ação civil pública, consolidada, densamente ocupada, ambientalmente frágil e de grandes dimensões territoriais com acesso direto à represa Billings, novas experimentações projetuais foram necessárias, tendo como desafio superar os problemas pela ocupação irregular e precária numa área de proteção ambiental e, principalmente, a ocupação inadequada às margens da represa, que tinha como agravante a ausência de saneamento básico.
Na elaboração do projeto de urbanização tratamos de formular hipóteses de intervenção que visaram suprir o conjunto de déficits de infraestrutura, qualificar e integrar o assentamento à cidade, conjugando as diversas disciplinas envolvidas, as questões fundiárias e de pós-ocupação, bem como a forma de organização de sua população.
Na contramão daquilo que vem sendo desenvolvido nos novos empreendimentos particulares, as intervenções buscam ressaltar a importância do espaço coletivo e público para a cidade e sociedade, numa perspectiva de transformação efetiva das condições socioespaciais que reforcem o direito à cidade e a inclusão social.
Este é o fio condutor do projeto de urbanização do Cantinho do Céu. Revelar a importância do espaço público e coletivo para a população local, transformando-o no instrumento principal para a qualificação do bairro.
Esta valorização do espaço público, entendido aqui como o conjunto de elementos capazes de dar suporte as mais diversas manifestações coletivas cotidianas – ruas, vielas, praças, parques – procura resgatar o sentimento de pertencimento à cidade como condição básica para o desenvolvimento das gerações futuras.
A intervenção no Cantinho do Céu vem sendo trabalhada, portanto, a partir da compreensão da importância de qualificação desse assentamento em virtude da sua escala e localização em área ambientalmente estratégica para a cidade de São Paulo.
O projeto de urbanização para os loteamentos irregulares Residencial dos Lagos, Cantinho do Céu e Gaivotas, aqui chamado apenas como Cantinho do Céu, considerou, além dos documentos, vistorias e aproximação do lugar, um conjunto de estratégias relacionadas a:
- Preservação da vida, mediante a correção de todas as situações de risco identificadas.
- Integração urbanística entre as novas intervenções e o tecido existente, respeitada a autonomia tipológica decorrente as diferentes condições em que se produziram as unidades existentes.
- Complementação e adequação da infraestrutura urbana, com melhorias sanitárias, ambientais e de mobilidade em todo o assentamento.
- Universalização do acesso à infraestrutura e aos serviços urbanos e provisão adequada de equipamentos comunitários e áreas de lazer e esportes.
- Adequação urbanístico-ambiental do assentamento e das novas intervenções ao bairro como um todo.
- Geração de condições necessárias para a regularização fundiária do parcelamento do solo.
A qualificação urbana e ambiental do Cantinho do Céu, a que se propõe o projeto de urbanização, se materializa no “tudo ao mesmo tempo”, em que as ações ocorrem de forma simultânea, orquestradas pelo eixo da criação dos espaços públicos.
Neste sentido, algumas palavras representam a nossa maneira de atuar nestes contextos, onde diálogo e harmonia se contrapõem a uma ação impositiva e arbitrária com o local, respeitando os esforços no processo de ocupação que podem representar em algumas situações a “obra da vida toda”.
As primeiras ideias tiveram como foco a melhoria das condições de acesso e mobilidade e da dotação de infraestrutura de saneamento ambiental à população residente do Cantinho do Céu, assim como reverter o impacto ambiental negativo que a ausência destas representa para o manancial e para a qualidade de abastecimento de água da população da Região Metropolitana de São Paulo.
Além da infraestrutura, outro aspecto importante foi a necessidade de remoções das construções, seja devido à impossibilidade de conectá-las à infraestrutura, seja pela situação de risco que as mesmas estavam expostas; mas, sobretudo, daquelas localizadas às margens da represa Billings, que possibilitaram a destinação desta área como parque, buscando aproximar a população da água.
As condições de acesso e mobilidade foram trabalhadas a partir da compreensão das estruturas viárias existentes para sua consolidação, e de um conjunto de propostas que procuraram integrar, articular e conectar os três loteamentos entre si e com a malha viária do entorno. Para tanto, novas ruas, vielas, escadarias foram propostas para garantir o acesso aos mais diversos pontos de interesse dentro do Cantinho do Céu e sua conexão com o entorno.
A configuração das ruas foi determinada pela sua relevância dentro do tecido urbano e pelo tipo de tráfego. O projeto utilizou, nas vias onde este é mais intenso, o pavimento em asfalto no padrão tradicional – rua com espaço para pedestre e automóvel. Nas vias com declividade acima de 15% a pavimentação é em concreto armado.
As vias de menor tráfego receberam tratamento distinto; o pavimento utilizado foi o intertravado de concreto, com sistema de drenagem localizado no centro da via. Esta alternativa distancia a drenagem dos lotes, tendo em vista a variação de alturas das soleiras das casas.
As soluções de projeto paras as vias perpendiculares ao parque, que também se enquadram nas de menor tráfego, tiveram como premissa explicitar o uso compartilhado entre o automóvel e o pedestre, e marcar o acesso ao parque.
Estas soluções foram aplicadas no trecho situado no loteamento Residencial dos Lagos que, além do desenho específico das vias, definiu estas áreas como de transição, pontos de encontro das vias com o parque, que receberam cor vermelha; foram projetadas em geometrias distintas com a finalidade de revelar a mudança de uso e possibilitar a integração ao parque.
O parque é configurado por uma faixa de, aproximadamente, 7km de extensão, às margens da represa Billings. A área a ele destinada foi delineada a partir da identificação das construções em situação risco e daquelas com impossibilidade de conexão aos sistemas de saneamento básico, ou seja, a superfície do projeto corresponde às áreas objeto de remoção, sejam elas as já realizadas ou as previstas.
Para esse trabalho, realizamos um planejamento inicial, considerando as diferentes características do relevo, hidrografia, remanescentes de vegetação, acessos existentes. A análise destas condicionantes nos conduziu à definição de seis trechos de intervenção, classificados em dois grupos, um voltado à conservação e preservação, outro ao lazer e recreação.
A área do parque apresenta condicionantes muito específicas, de modo que optamos pelo planejamento preliminar e pela elaboração do projeto apenas quando concluída a remoção das construções de cada trecho.
Hoje, o parque implantado tem 1,5 km de extensão e se concentra no Residencial dos Lagos; no entanto, esta extensão foi projetada e executada em partes, à medida que as áreas objeto de remoção fossem liberadas.
Este método nos permitiu desenvolver o projeto a partir da feição revelada do terreno, reconhecendo sua especificidade e propondo intervenções que ressaltassem a importância ambiental e paisagística da represa, ao mesmo tempo em que possibilitou a integração das ocupações do entorno à área do parque.
A intervenção compõe-se o de um conjunto de áreas destinadas à preservação e a usos diversos como lazer, recreação, esportes e contemplação.
Buscamos a definição de diversas áreas com usos específicos que permitissem que a população, de todas as faixas etárias, encontrassem um local para seu lazer, na pista de skate, de caminhada, na quadra, no cinema, nos playgrounds, nos decks e nos demais espaços projetados que permitem outras apropriações. O projeto do parque incorpora também as faces cegas das edificações com as quais ele confronta, propondo o tratamento destas como um painel, em cores e ritmos integrado ao parque, com a finalidade de compor uma paisagem com o ambiente natural e construído.
As áreas livres atuam então como um sistema de áreas verdes, associando usos de recreação e lazer à preservação da margem, com a manutenção e reconstituição de espécies vegetais nativas. O Parque apresenta-se como uma faixa limítrofe de apropriação coletiva entre a área ocupada e o reservatório.
O resultado das ações de urbanização até então realizadas vai além dos objetivos iniciais de assegurar a qualidade da água e evitar o assoreamento do reservatório. A intervenção promove a qualidade de vida dos moradores ao utilizar soluções projetuais que valorizam o lazer nos espaços remanescentes, inserindo-se funcionalmente à cidade.